Vozes do Povo

Sinopse de um projeto de investigação inovador

 

A iniciativa Vozes do Povo foi concebida por DEMOS, um instituto de pesquisa, com o objetivo de gerar conhecimentos científicos em apoio ao desenvolvimento democrático da Guiné-Bissau. Em 2018, na fase inicial, ela realizou o primeiro inquérito de opinião pública do país. A segunda fase, iniciada no ano seguinte, foi elaborada para aprofundar a pesquisa com base nos resultados deste inquérito e divulgar as conclusões por meio de publicações, apresentações e ateliês. Essas ações foram criadas para produzir dados e ideias úteis para a formulação de estratégias de desenvolvimento e promoção democrática, e avaliações de risco político. Com isso, procurou-se reforçar as capacidades científicas na Guiné-Bissau e criar instrumentos para a social accountability, o apoio ao diálogo público e a formulação de políticas baseados em evidências.

Para atingir esses objetivos, DEMOS elaborou três pesquisas, preparou um livro em português, em colaboração com dez académicos, traduziu a obra para o inglês, e organizou dois ateliês sobre os resultados do projeto. As quatro investigações realizadas são:

A pesquisa de mineração de dados e análise. Esta revelou informações inéditas a partir do data set da sondagem de 2018, feita com uma amostra nacional de 1.184 entrevistas. Através de diversos instrumentos estatísticos, o estudo criou um procedimento original para desenvolver 55 índices agrupados em torno de seis eixos temáticos: estratos sociais, adesão à democracia, engajamento na vida pública, coexistência social, apoio à igualdade social e risco de sectarismo religioso. O cruzamento desta informação com uma variedade de indicadores demográficos e identitários possibilitou a construção de um grande acervo de dados – uma ‘mina de ouro’ –, com informações de um valor excecional para a compreensão da realidade bissau-guineense. O relatório de pesquisa inclui nove anexos (os mais extensos, em planilha Excel) que totalizam 6.190 páginas.

O estudo de grupos focais. Este permitiu contextualizar e enriquecer as revelações produzidas no inquérito de 2018. As entrevistas de grupo foram realizadas em dez localidades distintas do país, junto de um segmento variado da população, entre outubro e novembro de 2019. A pesquisa envolveu 89 cidadãos bissau-guineenses e viabilizou uma conversa aberta sobre os principais resultados da sondagem: a visão geral do país, a convivência na sociedade bissau-guineense, a participação das mulheres na vida pública, e as perceções do Estado, dos governantes e das elites políticas. O relatório inclui quatro transcrições de 16,5 horas de entrevistas gravadas. A transcrição original em crioulo foi traduzida para o português, e duas versões desta última transcrição foram organizadas por assunto.

A revisão comparativa com outros países africanos é o primeiro estudo a posicionar a Guiné-Bissau em pesquisas regionais de opinião pública. Este estudo integra os resultados da sondagem realizada na Guiné-Bissau e os inquéritos efetuados pelo Afrobarometer em 17 países africanos. Ele inclui todos os países membros da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e todos os países africanos de língua oficial portuguesa, exceto Angola. O questionário compreende 193 perguntas relacionadas com uma ampla variedade de assuntos. Este relatório contém 314 tabelas e gráficos, baseados em 83.817 entrevistas e o processamento de quase 4,7 milhões de data points.

O livro Vozes do Povo: Sociedade, Política e Opinião Pública na Guiné-Bissau, organizado por Miguel Carter e Carlos Cardoso. Este livro de 324 páginas foi produzido em colaboração com dez estudiosos africanos, europeus, norte-americanos e sul-americanos, de diversas disciplinas académicas. Inclui 13 capítulos divididos em duas secções. Uma apresenta o projeto de pesquisa Vozes do Povo e os seus principais resultados. A outra fornece novas interpretações da sociedade e da política bissau-guineenses com base nesses dados. O livro foi preparado para publicação em português e traduzido para o inglês. Ambos os textos incluem 161 gráficos, tabelas e mapas. O volume contém os seguintes capítulos:

Parte I. Vozes do Povo: O Estudo e Resultados. (1) Estudo de opinião pública na Guiné-Bissau: Destaques e metodologia, (2) Vida pública: Democracia, engajamento cívico e partidos políticos, (3) Atitudes sociais: Igualdade de género e confiança interpessoal, (4) Etnia, política e religião numa sociedade heterogénea, (5) O povo reflete sobre a política e o povo, (6) Opinião pública na Guiné-Bissau e na África Ocidental. Estes seis capítulos são da autoria de Miguel Carter.

Parte II. Análise e Reflexões. Sobre a sociedade bissau-guineense: (7) Etnia, religião e história do poder popular, de Toby Green; (8) Condições de vida, território e convivência social, de Miguel Carter, Carlos Cardoso e Nafiou Inoussa; (9) Relações de género, de Birgit Embaló. Sobre a política e o Estado: (10) O artifício do homem forte e a instabilidade do regime político, de Miguel Carter; (11) Fragilidade e corrupção do Estado, de Carlos Cardoso e Ismael Sadilú Sanhá; e (12) Partidos políticos, eleições e participação cidadã, de Rui Jorge Semedo e Paulina Mendes. A conclusão, (13) Disjunção Estado-sociedade, foi escrita por Philip J. Havik e Joshua B. Forrest.

A pesquisa realizada para produzir estes estudos foi complexa, inovadora e ambiciosa. Complexa devido à envergadura da investigação, que envolveu mais de três anos e meio de trabalho e dezenas de pesquisadores. Inovadora por causa da sua metodologia, que combina elementos quantitativos, qualitativos, comparativos e interpretativos. Ambiciosa pela riqueza e qualidade do conhecimento produzido. Os autores desconhecem um país em África que tenha aprofundado um estudo de opinião pública com essa abrangência e originalidade.

Resumo dos principais resultados. Existe uma sensação generalizada de mal-estar na Guiné-Bissau, devido às condições de vida precária da população, a ausência do Estado na vida da maioria das pessoas, os sentimentos de injustiça, a perceção de corrupção e abuso de poder por parte de atores dominantes e a insatisfação generalizada com a governação do país. A aflição popular com a deterioração política e a instabilidade crónica do regime são notáveis. Estes sentimentos explicam a percetível relutância dos bissau-guineenses em fazer exigências ao Estado e a sua vontade de emigrar.

Embora apenas metade da população pudesse entender a palavra “democracia”, uma clara maioria identifica-se com valores associados a essa forma de governo, como a necessidade de proteger as liberdades de associação e expressão, realizar eleições livres e justas, e defender a obrigação do presidente de obedecer às leis e os Tribunais. A adesão à democracia na Guiné-Bissau é ampla, mas superficial. A rejeição do autoritarismo é mais forte do que a aceitação das normas democráticas. Neste país, os que defendem a democracia são mais proclives ao engajamento cívico, a tolerância religiosa e o apoio à igualdade de género.

A sociedade bissau-guineense apresenta várias qualidades que explicam a sua resiliência, coesão e estabilidade social. Nove em cada dez cidadãos têm um amplo sentido de pertença nacional. Apesar da grande diversidade étnica e religiosa do país, os bissau-guineenses apresentam níveis significativos ​​de tolerância inter-religiosa e interétnica. As pessoas mais religiosas tendem a ser mais tolerantes do que as pessoas pouco ou nada religiosas. A maioria dos bissau-guineenses exibe um ethos igualitário e apoia a igualdade de direitos de género.

Conclusões e recomendações. Os esforços para impulsionar o desenvolvimento democrático da Guiné-Bissau devem considerar ações destinadas a: (1) reforçar a educação cívica, (2) promover o engajamento cidadão, (3) apoiar a colaboração ecuménica entre grupos religiosos, (4) empoderar a participação das mulheres na vida pública, (5) capacitar aos partidos políticos e ajudar a formar uma nova geração de líderes bissau-guineenses, (6) ampliar o acesso a notícias confiáveis, (7) priorizar ações à escala nacional, (8) fomentar a cooperação interétnica, (9) estimular a confiança e a motivação, (10) melhorar as capacidades de pesquisa, (11) revisar o desenho institucional e as práticas do sistema político, e (12) considerar estratégias de construção do Estado com uma abordagem bottom-up, de baixo para cima, reforçando a governação local.